Por Margareth Martha Arilha
Todos se lembrarão do papel central que a temática do aborto teve
durante as eleições presidenciais e de como a então candidata Dilma
comprometeu-se publicamente perante todas as Igrejas, especialmente
católica e evangélicas, a levar adiante uma gestão que “defenderia a
vida”
Foi-se o tempo em que era prazeroso ser brasileira e participar de
debates, seminários e reuniões internacionais que versassem sobre os
direitos reprodutivos no Brasil. Foi assim durante as conferências
internacionais das Nações Unidas, na década de 1990, quando o Brasil
exibia um currículo construído com distinção, num processo de
interlocução entre Estado e movimentos sociais, e que permitia exibir
uma folha de serviços invejável à sociedade. Ganhava destaque a adoção
do Paism (Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher), o serviço
de aborto legal, assim como debates públicos consistentes sobre o
direito das mulheres à informação e acesso à contracepção e sua
regulação, antecipando uma enorme mudança de paradigma na formação e
assistência prestada por profissionais de saúde. Muitas conquistas foram
realizadas, com enorme ênfase nos processos de participação social.
Agora, que se iniciam os processos de revisão +20 das Conferências
Internacionais, o que o Brasil terá a dizer sobre sua atuação nos
últimos anos? Naquele período, embora fossem reconhecidas a força e a
presença dos grupos conservadores, dadas pela própria inserção do
Vaticano no conjunto de nações representadas na Assembleia das Nações
Unidas, ainda havia espaço para a interlocução independente com o Estado
brasileiro. Não há dúvidas de que este é o nó górdio que se abre
atualmente para o enfrentamento da agenda de direitos sexuais e
reprodutivos na América Latina e globalmente: a barreira criada pela
entrada das forças religiosas no campo do Estado. No entanto, no caso do
Brasil, essa porta aberta vem fazendo que a agenda brasileira de saúde e
direitos reprodutivos embarque em um retrocesso inaceitável, haja vista
nossa história pregressa. Diálogo com as Igrejas, sim, mas diálogo não
significa submissão. Por que rezar justamente essa cartilha?
O crescimento do conservadorismo no Brasil e no mundo, nessa matéria, tem sido alvo de inúmeros debates e discussões,
havendo relativo consenso de que o cenário de fortes mudanças que
ocorreram nas sociedades ocidentais desde a década de 1960 geraria uma
reaçãode igual intensidade e sentido oposto. Como se sabe, tal processo
questionou posições aparentemente cristalizadas de valores e
subjetividades e colocou as liberdades individuais no centro das
posições de transformação. O peso das religiões na determinação de
valores, condutas e comportamentos passou a ser relativizado.
A reação a esse processo de intensa transformação cultural parece se estruturar na forma de um retorno a valores tradicionais.
Nessa iniciativa, o próprio Vaticano emerge como ator central e se
dedica a olhar e atuar de maneira importante sobre a América Latina, uma
região que aglutina um conjunto quantitativamente importante de
católicos. Nos últimos quinze anos, o continente vem sofrendo grandes
transformações, com a eleição de governantes de esquerda, o que poderia
ser compreendido como um risco à manutenção da presença de valores
religiosos nas culturas locais. Em relação ao que esse setor conservador
considera uma ameaça, ele vem atuando com uma política de produção e
absorção de recursos humanos qualificados e estrategicamente situados,
defensores de propostas específicas, seja por meio de enunciados de
leis, seja por argumentos usados para a criação de barreiras a
medicamentos e regulações na América Latina, incluindo o Brasil.
Momentos eleitorais têm sido períodos de fragilidade para o campo dos
direitos reprodutivos em toda a América Latina. Nesses processos, as
Igrejas pressionam forças políticas de esquerda usando de suas tribunas
para tentar impedir o voto em candidatos comprometidos com o campo dos
direitos sexuais e reprodutivos. Nicarágua, Uruguai, Argentina, Chile e
República Dominicana são exemplos. No Brasil, nas últimas eleições
majoritárias, a situação foi tragicamente similar. Todos se lembrarão do
papel central que a temática do aborto teve durante as eleições
presidenciais e de como a então candidata Dilma comprometeu-se
publicamente perante todas as Igrejas, especialmente católica e
evangélicas, a levar adiante uma gestão que “defenderia a vida”.
Em agosto de 2010, o arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Scherer, publicou no jornal O Estado de S. Paulo
uma matéria assinada que revelava a perspectiva e a plataforma com que a
Igreja Católica, liderando os grupos conservadores, vinha trabalhando
no Brasil. O texto de D. Odilo é claríssimo e explicita o que podem ter
sido as conversações de 2010: a ênfase sobre temas do campo da família e
a retomada de questões associadas ao direito à saúde das mulheres de
uma perspectiva materno-infantil − apoio total à maternidade, fechamento
de clínicas clandestinas de aborto com punição dos responsáveis,
críticas ao planejamento familiar, chamado à responsabilidade do pai
biológico e cumprimento da lei em vigor no que se refere à proteção e à
defesa da mãe e do “filho” ainda por nascer.
Visto assim, de relance, para os mais distraídos, poderia parecer
difícil discordar dessa agenda da Igreja Católica. No entanto, desde a
segunda gestão Lula, tem-se criado, na área da saúde, um ambiente hostil
ao discurso de emancipação das mulheres, de valorização de posturas que
foram caras ao movimento de mulheres nacional e internacionalmente.
À época, infelizmente, o movimento feminista preferiu, de maneira
geral, apostar no jogo eleitoral, não incrementando o debate público
sobre os direitos reprodutivos, deixando de lado uma de suas questões
mais caras, o direito ao aborto, em nome da futura eleição da presidente
Dilma Rousseff. O movimento feminista pagou caro, uma vez mais.
O feminismo nunca deixou de valorizar a maternidade e a família. Ele
buscou incluir nesse cenário os direitos humanos de todos,
independentemente de cor, raça, classe social, orientação sexual, gênero
ou idade, promoveu o respeito a suas opções, ressaltando como direito a
autonomia e o poder de decidir das pessoas, especialmente em suas
práticas sexuais e reprodutivas. Assim, o pré-natal é importante, sim,
mas poder decidir sobre a gravidez também o é, o que se traduz no acesso
à contracepção e ao aborto.
Lembro perfeitamente, ainda na década de 1980, que na condição de
representantes do Conselho Estadual da Condição Feminina e acompanhadas
de grupos da sociedade civil, discutíamos com o secretário de Saúde – à
época João Yunes – que os centros de saúde só faziam o pré-natal e não
viam as mulheres em sua integralidade, em todas as suas necessidades de
saúde e em todas as etapas de sua vida. Essa era a diferença do Brasil
com outros países da América Latina.
Durante as conferências das Nações Unidas, na década de 1990, já
tínhamos percorrido um extenso caminho de debate social e político, que
permitia promover políticas públicas inclusivas e integradoras, de amplo
espectro, e mostrava às agências de cooperação internacional qual era o
caminho a seguir. Na verdade, o Brasil foi um parâmetro para toda a
América Latina em se tratando de saúde das mulheres.
A segunda gestão do presidente Lula e, agora, os passos de nossa
presidente vêm mostrando que os governos que internacionalmente levam a
fama de mais democráticos são aqueles que têm gerado mais dificuldades
para a defesa da agenda dos movimentos de mulheres. Como mostrar isso ao
mundo? Como dizer que a presidente Dilma, apesar de altos níveis de
aprovação pela opinião pública, de ser mulher e de ter falado em saúde
da mulher em seu discurso perante as Nações Unidas, traz nas entrelinhas
de sua gestão um enorme acordo com a Igreja Católica?
Os sinais são claros desde Lula: a entrada maciça da educação
religiosa nas escolas; os problemas com a contracepção de emergência; a
assinatura do Termo de Acordo entre Brasil e Vaticano; a relutância em
enfrentar o debate sobre o aborto no Congresso Nacional; a crise gerada
em torno do Programa Nacional de Direitos Humanos em suas colocações
sobre a autonomia das mulheres; a falta de priorização da votação da
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)n. 54, no
Supremo Tribunal Federal, que trata da antecipação do parto nos casos de
anencefalia; as barreiras de informação e acesso ao uso do misoprostol,
um medicamento altamente eficaz em ginecologia e obstetrícia, mas que,
por seus efeitos abortivos, sofre impedimentos de toda ordem. E chegamos
até o programa Rede-Cegonha e finalmente à recente Medida Provisória
(MP) n. 557, de 26 de dezembro de 2011.
A paciência acabou. Dessa vez, com a MP n. 557, o governo da
presidente Dilma realmente se excedeu. Com o objetivo de reduzir a
mortalidade materna, sem disfarces, pretendeu vender à sociedade aquilo
que seriam os “direitos do nascituro”. Em texto que passa a valer a
partir do momento de sua publicação e que só pode ser retirado de
tramitação no Congresso Nacional pela própria presidente, a MP, além de
alterar a lei que organiza o sistema de saúde para introduzir os
direitos do nascituro, estabelece a necessidade de um cadastro de
gestantes que obriga a identificação das mulheres grávidas e propõe um
Comitê Gestor Nacional, sem qualquer participação da sociedade civil, e
Comissões de Cadastro, Vigilância e Acompanhamento de Gestantes e
Puérperas de Risco, desconhecendo estruturas já existentes no sistema de
saúde e que poderiam ser melhoradas.
Essa MP possibilita a invasão de privacidade daquelas que
eventualmente desejem abandonar o caminho da gestação e parto, optando
por um aborto. Além disso, cria o auxílio de R$ 50 para o transporte das
que têm dificuldade financeira, escamoteando o real problema da
mortalidade materna no Brasil, que é a qualidade da atenção ao parto. Do
abortamento inseguro como causa da morbimortalidade materna, nem sinal.
Inúmeras têm sido as manifestações da sociedade civil contrárias à MP:
Central Única dos Trabalhadores (CUT), Rede Nacional Feminista de Saúde e
Direitos Sexuais e Reprodutivos, Articulação de Mulheres Brasileiras,
médicos da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e
Obstetrícia (Febrasgo), membros da Comissão de Cidadania e Reprodução,
Observatório de Sexualidade e Política, Centro Brasileiro de Estudos de
Saúde (Cebes), Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva
(Abrasco). E agora, Brasil?
A Argentina caminha de um país de Menem na época da Conferência
Internacional de População e Desenvolvimento no Cairo, em 1994, de total
apoio às iniciativas da Igreja Católica, para um processo de maior
debate público, com a inserção de um volume maior de atores sociais, com
propostas mais ousadas. Foi assim que, em 2011, na Argentina, uma
coalizão de grupos de mulheres insistiu em promover um debate público de
propostas de projetos de lei. O aborto é proibido por lei na Argentina,
salvo em casos de risco para a vida da mãe ou abuso de mulher
incapacitada. Nesse segundo caso, no entanto, a decisão costuma ser da
Justiça, aspecto que já vem sendo problematizado por juristas e
profissionais da saúde. Embora não tenha sido possível chegar à análise
de projetos de lei pela Câmara dos Deputados, chegou-se bem perto disso.
No caso do Brasil, ocorreu o contrário. Um esforço enorme vem sendo
despendido pelos movimentos sociais para tratar de segurar projetos de
lei que, se aprovados, fariam retroceder o que já existe em nosso Código
Penal, ou seja, a possibilidade de abortar nos casos em que a gravidez é
resultado de um estupro ou quando a mulher grávida corre risco de vida.
No Uruguai, superando o veto que o ex-presidente socialista Tabaré
Vasquez deu à lei que descriminalizaria o aborto, em 2008, o atual
Senado uruguaio voltou a debater e aprovou a lei que, se também for
aprovada pela Câmara dos Deputados, será sancionada pelo atual
presidente, conforme já anunciado publicamente. O projeto de lei
estabelece que “toda mulher maior de idade tem direito a decidir sobre a
interrupção voluntária de sua gravidez durante as primeiras doze
semanas do processo de gestação”. Tal período de três meses não é levado
em conta se a gravidez for resultado de estupro, se a saúde ou a vida
da mulher estiverem em risco e se existir má-formação grave do feto,
incompatível com a vida extrauterina.
Na Colômbia, até 2006, o Código Penal punia o aborto de maneira
absoluta, mas, mediante uma arguição de inconstitucionalidade e promoção
de intenso debate público, as três causas que acabamos de citar
passaram a ser aceitas para a realização de um aborto, com apoio de
acadêmicos, associações médicas, religiosos, grupos de direitos humanos,
entre outros.
Mas foi finalmente na capital do México que se obteve a maior inflexão
legal. A partir de 2007, no Distrito Federal do México, o aborto deixou
de ser penalizado quando realizado até a 12ª semana de gestação, o que
criou um precedente na América Latina até então inimaginável. Com mais
de 40 mil abortos realizados pelos catorze centros de referência
estabelecidos, usando também o misoprostol, medicamento sobre o qual em
tese nem se podem difundir informações no Brasil, o DF do México passou a
ser um paradigma para todos os países em termos de execução de
políticas públicas inovadoras para a saúde da mulher.
Ao contrário do DF mexicano, o Brasil, que em 1988 elegeu a primeira
mulher prefeita da cidade de São Paulo e estabeleceu o primeiro serviço
de aborto legal latino-americano, anda devagar. Anda de marcha a ré em
relação aos direitos reprodutivos.
O estabelecimento da MP n. 557 para tentar reduzir a mortalidade
materna, mas que na verdade serve para pavimentar direitos do nascituro,
é, no mínimo, surpreendente. Reconhecer erros, como acaba de ser feito
pela presidente Dilma, pode ser mais benéfico na construção de um leque
de alianças amplo, do qual mulheres ativistas, acadêmicas e
trabalhadoras também façam parte. Mas, a retirada da MP é fundamental se
quisermos dizer no Rio+20, em Cairo+20 e em Beijing+20 que o Brasil tem
cumprido seus acordos e promessas nacionais e internacionais, gerados
na década de 1990. E, principalmente, compatibilizar políticas e
direitos humanos de todas as cidadãs, independentemente de credo, raça,
classe social, orientação sexual e gênero. É o que se espera deste
Brasil emergente.
Para onde vamos, presidente Dilma?
Margareth Martha Arilha
Pesquisadora do Nepo/Unicamp e membro da Comissão de Cidadania e Reprodução
Crédito: Le Monde Diplomatique Brasil
Crédito: Le Monde Diplomatique Brasil
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